quinta-feira, 23 de julho de 2015

Se o Haiti é aqui, o Avaí também.

Na vitória (considerada zebra) dos EUA de 1 x 0 contra a Inglaterra em 1950, o autor do gol foi o imigrante haitiano Joe Gaetjens. Embora hoje esse resultado possa parecer normal, naquela época a seleção dos EUA era praticamente amadora e nesse confronto, todo o favoritismo estava com Inglaterra que pela primeira vez concordou em participar da Copa do Mundo. Essa vitória histórica resultou em filme, Duelo de Campeões (The Game of Their Lives), de David Anspaug (disponível no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=78JokICVNLc), que retrata bem o heroísmo desse feito.

Joe Gaetjens
Apesar de ser recebido como herói nos EUA, Gaetjens optou por seguir a carreira de futebolista no futebol francês e quatro anos depois, retornou ao Haiti e chegou a disputar as eliminatórias da Copa de 1954 pelo seu país natal.

Entretanto, após a chegada no poder de François Duvalier em 1957 (conhecido como Papa Doc), o Haiti passou a enfrentar um regime de terror. Pelo fato de ter apoiado um opositor, Gaetjens foi sequestrado e morto pelos Tontons Macoutes, a polícia política ligada à Papa Doc em 1964. Relatos posteriores dão conta de que o próprio Papa Doc, pessoalmente, foi quem matou Gaetjens na prisão.

Anos mais tarde, o Haiti voltou a obter destaque no cenário futebolístico ao conseguir a vaga da Concacaf (Confederação de Futebol da América Central, do Norte e Caribe) em dezembro de 1973 para disputar a Copa do Mundo de 1974. Naquela época, a fase final das eliminatórias foi disputada em sede única (no próprio Haiti) sob forte influência da ditadura haitiana, agora nas mãos de Baby Doc, que sucedeu a Papa Doc em 1971, mantendo o regime de terror. Consta que durante as eliminatórias, em um jogo decisivo contra Trinidad e Tobago, o árbitro, ameaçado de morte por Baby Doc, anulou cinco gols dos visitantes e o jogo terminou em 2 x 1 para o Haiti.

Na Copa de 1974, disputada em território alemão, na estreia do Haiti, depois de segurar empate sem gols no primeiro tempo contra a Itália, saiu na frente do placar no início do 2º tempo mas não conseguiu segurar o selecionado italiano e acabou derrotado por 3 x 1. Ao término da partida, o zagueiro Jean-Joseph foi pego no exame antidoping (foi a primeira Copa que passou a adotar esse procedimento) porque, inocentemente, tinha tomado remédio contra asma. Assim que foi divulgado o resultado e ele ter sido suspenso da Copa, a equipe de segurança do Haiti, sob as ordens diretas de Baby Doc, espancou violentamente este jogador por ele ter “envergonhado a história do país”, que sem Jean Joseph, foi goleado nas outras duas partidas naquela competição (7 x 0 para a Holanda e 4 x 1 para a Argentina).

Após retornar ao Haiti, Jean Joseth ainda permaneceu cerca de dois anos preso até que foi liberado para que pudesse reforçar a seleção haitiana nas eliminatórias para a Copa de 1978.

Jean Joseph (camisa escura no chão) em lance do fatídico jogo contra a Itália pela Copa de 1974.


Em 1986, quando Baby Doc fugiu do Haiti para se exilar na França, deixou como herança um dos países mais pobres do mundo e com piores indicadores sociais. Tal situação serviu de inspiração para uma bela canção de Gil e Caetano: “Haiti”, carro chefe do disco Tropicália 2, lançado em 1993, quando aquela país tentava se reestruturar no meio de total instabilidade política.

Aliado às tragédias políticas e sociais, um terremoto em 2010 devastou ainda mais o pequeno país caribenho, dizimando mais de 300.000 habitantes e deixando cerca de 1,5 milhões desabrigados. Alarmados e totalmente destituídos de esperanças, muitos haitianos se viram praticamente forçados a sair do país e recomeçar a vida em outro país, causando um movimento migratório que teve no Brasil, que lhes fornece visto humanitário, um dos principais destinos.

Desde então, esses imigrantes, assim como outros tantos no passado mais distante, passaram a fazer parte da história do Brasil e muito têm contribuído com seus esforços para refazer a vida por aqui. Foi comum vê-los trabalhando inclusive para erguer os estádios que serviram de sede para a Copa do Mundo (infelizmente nem sempre em condições dignas de trabalho).

Como se não bastasse todas as dificuldades, eles ainda enfrentam preconceito e manifestações xenofóbicas de parcela da população brasileira, que poderíamos chamar de “direita raivosa”.

Foi nesse contexto que veio à tona nessa semana uma bonita campanha do Avaí, time de futebol de Florianópolis, contra a marginalização dos imigrantes haitianos. Na última rodada do campeonato brasileiro, o Avaí disputou com uma camisa escrita Linyon, que significa “União” na língua crioulo, idioma falado naquele país e lançou um vídeo abordando o tema. Com uma chamada “Pode um ser humano ser menos humano do que outro?”, lançou ainda um belo vídeo retratando a campanha:

https://www.youtube.com/watch?v=hhSnqhmL7n8

Avaí com a camisa em homenagem aos haitianos em julho de 2015


Que a partir de agora o futebol esteja mais ligado à esperança do que às tragédias que os haitianos passaram ao longo dos últimos tempos. E que sejam bem vindos ao até pouco tempo atrás “país do futebol”.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Neneca e a morte do bife com batatas no futebol

 
Figura do Neneca no Futebol Cards (frente)
Foi com um misto de pesar e nostalgia que soube do falecimento de Neneca (Hélio Miguel, de batismo) ontem, 25 de janeiro de 2015, aos 66 anos, goleiro nos anos 1970 e 1980, com passagens vitoriosas por Londrina, Náutico, Guarani e Operário-MS, entre outros.

Nascido em Londrina, onde começou a carreira, Neneca desde o início destacou-se e acabou despertando interesse do América-MG em 1973, onde participou da melhor campanha daquele time na história dos Campeonatos Brasileiros, terminando em 7º lugar.

No ano seguinte, no Náutico, além da conquista estadual em 1974, passou incríveis mais de 18 jogos (1636 minutos) sem tomar gol, estabelecendo o recorde mundial (nos campeonatos cariocas de 1977 e 1978, Mazzarópi, no Vasco teria batido esse recorde em uma contagem polêmica, já que não se trata de jogos seguidos).

Mas foi no Guarani, em 1978, que obteve seu maior feito ao sagrar-se campeão brasileiro em um time do interior (feito inédito até hoje). Acompanhei essa trajetória de perto pois morava em Campinas e posso afirmar que mesmo sem ser bugrino, jamais esquecerei aquela escalação vitoriosa (a melhor da história do Bugre): Neneca, Édson, Mauro, Gomes e Miranda; Zé Carlos, Renato e Zenon; Capitão, Careca e Bozó.  Time de jogadores com nomes simples e apelidos, fato que certamente contribui para sua fácil memorização. No jogo decisivo de 1978, contra o Palmeiras, além de não tomar gols, Neneca teve participação direta no gol de Careca, dando o lançamento, como podemos constatar nesse vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=9aUmTxzr_Xs

 Guarani campeão brasileiro em 1978. De pé: Miranda, Zé Carlos, Mauro, Neneca, Édson e Mauro. Agachados: Capitão, Renato, Careca, Zenon e Bozó.

Posteriormente Neneca ainda teve passagens também gloriosas pelo Operário (MS) e Londrina, novamente, onde sagrou-se campeão paranaense de 1981 e retornou anos mais tarde já no final de carreira.

Poderia ser apenas mais um caso de ex-jogador que por doença ou outro motivo, vem a falecer, mas para mim em particular, esse jogador traz lembranças da época em que iniciei minha paixão por futebol na infância, quando poucos brasileiros jogavam no exterior e os salários, mesmo dos craques, não eram milionários. Tempos em que as camisas dos times, sem marcas, estampavam apenas o escudo em mal feitas costuras. Os últimos tempos “românticos” do futebol brasileiro.

Um dos símbolos daquele tempo eram as memoráveis figurinhas do Futebol Cards, que acompanhavam chicletes e estampavam de um lado a foto do jogador e do outro, uma simpática ficha técnica em que, entre outras informações, constava prato predileto e filmes memoráveis. Do então goleiro campeão brasileiro, seu prato predileto era um singelo bife com batatas. 
Figura do Futebol Cards com a ficha do jogador (fundo)

Enfim, Neneca representa uma época em que os jogadores eram reconhecidos por apelidos ou nomes simples e o futebol não tinha toda essa publicidade e marketing de hoje. Atualmente, com essa história de futebol ser visto com um produto, assim como os jogadores, este esporte acabou deixando sua essência de lado e pra mim, um retrato fiel disso é o sumiço de apelidos nos jogadores e a sua substituição por nomes e sobrenomes. Enquanto o Guarani de 1978 começava sua escalação com Neneca e finalizava com Capitão, Careca e Bozó; atualmente a simplicidade foi extinta também das denominações dos jogadores. Um triste exemplo disso é a atual base do São Paulo. Não sei se é influência de empresários já pensando no mercado europeu ou se é ideia isolada de algum dirigente, mas o tricolor que chegou a semifinal da Copa São Paulo disputada agora mesmo mais parecia lista de aprovados no vestibular do que de jogadores de futebol, com nomes como Lucas Paes, Welligton Cabral, Vitor Tormenta, Matheus Reis, David Neres, Gustavo Hebling, Lucas Fernandes e Leonardo Prado em sua escalação. Um festival de nomes e sobrenomes que dificilmente ficarão na memória do torcedor. A julgar pela lógica atual, Pelé, Zico, Careca não teriam vez. Teríamos que nos acostumar com Edson Nascimento, Arthur Coimbra e Antonio Oliveira. E no dia 25/01/2015, teria falecido o ex-goleiro Helio Miguel.

 
Obs: a rica história do Neneca está retratada, com uma locução formal que lembra velhos tempos, em vídeo disponibilizado no site do Londrina: https://www.youtube.com/watch?v=h6hZ-WZs8qM