quarta-feira, 29 de junho de 2016

Ruud Gullit, o legítimo herdeiro de Cruyff (nos gramados e fora dele)

Foto da edição da Placar com a retrospectiva de 1988, com Ruud Gullit beijando o troféu.

A história do futebol é repleta de casos em de grandes craques que não conquistam títulos relevantes por suas seleções e Cruyff foi um desses. Embora tenha sido o responsável direto por colocar a Holanda no mapa da bola, ficou com o vice-campeonato da Copa do Mundo em 1974, parou na semifinal da Eurocopa de 1976 diante da Tchecoslováquia e em 1978 abriu mão de participar da Copa do Mundo quando sua geração da Holanda ficou novamente com o vice-campeonato.

Mas no caso específico da Holanda, a justiça foi feita com a geração seguinte, liderada por Ruud Gullit, verdadeiro herdeiro do futebol de Cruyff no time. 

Craque que se consagrou entre final dos anos 1980 e início dos 1990, o polivalente jogador, famoso por sua cabeleira, passou pelo Feyenoord justamente quando Cruyff se despedia dos gramados no mesmo time na temporada 1982-83. Anos mais tarde, já consagrado, Gullit relatou esse momento:

"Minha primeira recordação real no futebol foi no mundial de 1974, o gol de Johan Cruijff sobre o Brasil. É algo que sempre levo em mente. Cruyff me ensinou muitíssimo. Coincidi com ele em sua última temporada como jogador, no Feyenoord, no início dos anos 80. Era inteligentíssimo. Taticamente estava acima do resto.(...) Eu o olhava e pensava: 'Tem 38 anos e é muito bom. O que deve ter sido jogar com este homem quando tinha 24?' E a verdade é que nunca tive noção da resposta".[1]

Em 1988, ao lado de craques como Van Basten e Rijkaard (com quem ganhou também o campeonato italiano daquele ano), Gullit levou a seleção holandesa sob o comando de Rinus Michels (o mesmo técnico de 1974) ao título da Eurocopa, ironicamente disputada na então Alemanha Ocidental, a mesma que sediou a Copa do Mundo de 1974, depois de despachar a dona da casa na semifinal. 

Após vencer a União Soviética na final por 2 x 0 com gols de Gullit e Van Basten (esse último, um golaço), a Holanda enfim comemorou um grande título ao som de We are de Champions no estádio. No youtube tem um bom documentário sobre esse jogo: https://www.youtube.com/watch?v=0ufZKwBG-ZI

Os títulos que Cruyff não conseguiu sobraram na carreira de Ruud Gullit em todos os times que jogou (Haarlem, Feyenoord, PSV, Milan, Sampdoria e Chelsea - onde foi ao mesmo tempo técnico e jogador). Dotado de muitas qualidades técnicas e excelente conhecimento tático, colecionou troféus particulares também. Em 1987, já no vitorioso Milan daquela época, Gullit foi eleito o melhor jogador da Europa [2]. Politizado como era, preparou um discurso em que homenageava Nelson Mandela, que se encontrava ainda preso e incomunicável pelo regime do Apartheid. O sua atitude política toma uma dimensão maior ao lembrarmos que os responsáveis pelo regime de segregação racial em vigor na África do Sul tinha sido imposto pelos boêres (ou africâners), descendentes de holandeses que colonizaram aquele país.

Infelizmente sua fala foi censurada, mas mesmo assim ele dedicou seu prêmio ao Mandela durante os agradecimentos e entregou uma cópia do discurso que pretendia fazer a cada um dos presentes na cerimônia. E sua luta anti-apartheid continuou na música. No anos seguinte, em 1988, ele participou da gravação do reggae South Africa em prol da causa anti-apartheid da banda Revelation Time, que alcançou o terceiro lugar nas paradas holandesas. Vale a pena conferir: https://www.youtube.com/watch?v=iDDHiJqsQas. Gullit não era um iniciante na música. Quatro anos antes já havia gravado a música Not the Dancing Kind: https://www.youtube.com/watch?v=RhmJFOa4RgQ

Em 1990, depois de 27 anos preso, finalmente Nelson Mandela foi libertado e posteriormente conseguiu ser eleito presidente da África do Sul, terminando o regime segregacionista. Ciente da ajuda que recebeu de Gullit não só pelo discurso, mas por doações que o craque holandês fazia à causa, em 1997 Mandela concedeu ao jogador a Ordem do Comendador da Boa Esperança, maior condecoração na África do Sul, no First Nacional Bank (FNB) Stadium, onde a seleção da África do Sul (Bafana-Bafana) enfrentou a Holanda.[3]

Encontro de Gullit com Mandela

Ruud Gullit foi, de fato, merecedor dessa homenagem. Ao longo da sua vitoriosa carreira sempre se preocupou em lutar contra o racismo e pelo fim do regime de segregação racial. Gullit não fez justiça apenas nos gramados ao levar a Holanda ao título europeu, mas conseguiu ter brilho maior ainda na sua luta por uma sociedade mais justa. Que ele sirva de inspiração para os craques do mundo de hoje. 


Notas:
[1] Informação obtida na página http://www.superesportes.com.br/app/1,1128/1,1128,1,1091/noticia-mundial-de-clubes/1,1128,1,200/1,200,1,131/1,131,1,307/1,307,1,130/1,130,1,200/1,200,19,88/19,88,1,17/1,17,1,15/1,15,20,25/20,25,1,131/1,131,1,307/1,307,1,188/1,188,20,17/20,17,1,692/1,692,7,348/7,348,1,522/2012/06/05/noticia_por_onde_anda,218765/, que divulgou a entrevista original fornecida à revista France football
[2] Naquela época, não havia eleição oficial da FIFA para melhor do mundo em cada ano, mas as eleições da revista France Football que resultava no prêmio Bola de Ouro (França) tinha a representatividade de eleger o melhor jogador europeu. A partir de 2010, sua premiação foi unificada com a da FIFA. Além da Bola de Ouro, a revista World Soccer (Inglaterra) também faz eleição representativa desde 1982. Ruud Gullit levou a Bola de Ouro em 1987 e duas vezes considerado o melhor europeu pela World Soccer (1987 e 1989).
[3] Paper: “Ruud Gullit. Soccer, Racism and Apartheid” ISSN - 1481-3440 obtido em http://www.anthroglobe.org/docs/Racism-soccer-South%20Africat.htm


sábado, 25 de junho de 2016

A música de Johan Cruyff

Meu chaveiro que homenageia Cruyff e a camisa retrô da laranja mecânica com duas listras

A Eurocopa em disputa atualmente tem, como grande ausência, a Holanda, que nos últimos anos acostumou-se com certo protagonismo no futebol. Entretanto, nem sempre foi assim. Durante boa parte do século XX, a seleção holandesa nem chegava a disputar Copas do Mundo. Foi só a partir da década de 1970, mais precisamente na Copa de 1974, que a Holanda entrou definitivamente no rol das grandes seleções mundiais ao apresentar o chamado futebol total, em que se notabilizou por jogadores que trocavam de posições e flutuavam em campo, confundindo a marcação adversária. E o maior responsável pelo futebol apresentado pela Laranja Mecânica foi Johan Cruyff. Ídolo do Ajax e do Barcelona, Cruyff foi um jogador inteligentíssimo em campo, que revolucionou a forma de atuar, sempre com grande personalidade e, sobretudo, genialidade que imortalizou a camisa 14. Cruyff foi daqueles jogadores cujo protagonismo transcende os gramados, deixando uma biografia repleta de fatos bem interessantes. [1]

Alguns desses são bem conhecidos, como o fato de ter sido uma criança com problemas ortopédicos que somente foi jogar futebol na base do Ajax após sua mãe, viúva e trabalhando como faxineira do clube, acreditar que a prática do esporte poderia ajudá-lo na recuperação dos problemas que ele tinha com as pernas.

Cruyff foi um dos pioneiros na atenção aos direitos de imagem. Na Copa de 1974, o principal craque do Carrossel Holandês era patrocinado pela Puma. Entretanto, a sua seleção tinha uniformes fornecidos pela Adidas. Para não ter sua imagem atrelada à Adidas com as três listras na camisa, optou por usar uma em que possuía apenas duas listras no ombro, diferentemente do resto de seus companheiros de seleção.

Quatro anos depois, na Copa de 1978 disputada na Argentina, com 31 anos e craque plenamente consagrado, optou por não jogar. Na época ainda houve uma campanha para que ele mudasse de ideia chamada “ Pull Cruyff Over the Line”, que tinha como tema a famosa canção tema dos Smurfs chamada “Father Abraham” (https://www.youtube.com/watch?v=kWbMikrZ91U). Mas não adiantou e ele acabou não participando do segundo vice-campeonato seguido da Holanda.

Durante muito tempo acreditou-se que teria sido um boicote pessoal à forte ditadura militar que assumiu o poder naquele país, já que ele era bastante politizado. Entretanto, 30 anos depois da Copa, ele revelou que abriu mão de disputar aquela Copa por conta de um assalto que havia sofrido em sua residência um ano antes em Barcelona, ocasião que o fez repensar suas prioridades de vida e preferir ficar com sua família naquela época. Em seguida, o craque do Barcelona na época anunciou sua precoce aposentadoria (que não iria durar muito).

Um aspecto surpreendente na sua trajetória é o fato de que, além de ser muito magro, o craque holandês fumava cerca de 20 cigarros por dia, inclusive em intervalos de partidas de futebol, algo impensável para um atleta de ponta nos dias de hoje. Anos mais tarde, já como técnico de futebol também revolucionário do Barcelona, Cruyff teve um enfarte e, alertado pelo médicos, não só largou o vício em 1991, como também atendeu a pedido do  Departamento de Saúde da Catalunha e participou de uma campanha televisa em que dizia: “o futebol me deu tudo. Fumar quase me tirou” (https://www.youtube.com/watch?v=KDLjnkXRZUA).

No meio de todas essas histórias que enriquecem sua biografia, uma delas é ainda pouco conhecida: o fato dele ter gravado, no final dos anos 60, duas canções holandesas que que mais lembram músicas folclóricas que tocam em eventos como Oktoberfest: Oei, Oei, Oei (https://www.youtube.com/watch?v=AfX9uwL0F2k) e Alle stoppen ineens naar de knoppen (https://www.youtube.com/watch?v=CALdxmxFTng). Mas convenhamos que, como cantor, Cruyff foi um excelente jogador de futebol.


Capas da grande imprensa mundial homenageando-o em março de 2016 (fonte:http://www.dailyrecord.co.uk/sport/football/football-news/feyenoord-bring-friendly-sparta-rotterdam-7626843) 

Infelizmente em 24 de março deste ano, o câncer no pulmão (certamente relacionado aos anos em que fumava) acabou levando Cruyff. Eleito em 1999 como o melhor jogador europeu do século XX e o segundo melhor do mundo (atrás apenas do Pelé) pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS), definitivamente o futebol ficou de luto. Perdemos um genial ex-jogador e ex-treinador, mas ficou o mito.

Paulo Procópio Burian

Notas: [1] Para conhecer um pouco do seu futebol, vale a pena ver alguns vídeos, como, por exemplo, esse aui: https://www.youtube.com/watch?v=NjvsnwnHJyM

sábado, 18 de junho de 2016

O rock do Rosicky, o Pequeno Mozart

Thomas Rosicky no Arsenal

Acabo de saber que hoje Rosicky sentiu uma lesão na coxa e está fora da Eurocopa 2016, torneio que muito provavelmente seria sua despedida da seleção da República Tcheca. Certamente a seleção tcheca vai sentir falta de seu principal jogador. Eu, pessoalmente, como cidadão tcheco e admirador do Arsenal, tenho mais motivos para lamentar.

Filho de um ex-jogador, o meia Thomas Rosicky despontou cedo no futebol do Sparta Praha demonstrando grande habilidade, técnica e raça. Depois de suas primeiras conquistas o Pequeno Mozart (como passou a ser conhecido) foi contratado pelo Borussia Dortmund, onde teve grande destaque, inclusive com títulos no futebol alemão.

Depois de ter sido um dos destaques na ótima campanha da República Tcheca na Eurocopa 2004 (1) ao lado de craques como Nedved, Baros e Petr Cech, Rosicky chamou atenção do futebol inglês e acabou sendo contratado pelo Arsenal em 2006, logo após a Copa do Mundo daquele ano.

Depois de um bom começo, a partir de 2008, passou a enfrentar uma série de contusões que atrapalharam demais sua carreira nos anos seguintes, chegando a perder quase uma temporada inteira nos seus últimos anos. Com o retrospecto repleto de contusões, deixa a impressão que foi mais um exemplo daqueles craques que não chegaram a ser. Uma pena. Ao término da última temporada, com o final do seu contrato, o Arsenal prestou até uma homenagem a ele em reconhecimento à sua entrega e lealdade ao time. Confira lances do Rosicky pelo Arsenal aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DyJeJ8bXMT8https://www.youtube.com/watch?v=DyJeJ8bXMT8.

Mesmo quase sem entrar em campo no último ano devido às contusões, foi convocado para jogar a Eurocopa nesse ano com a responsabilidade de liderar o jovem time tcheco. Depois de dar uma bela assistência no primeiro gol tcheco contra a Croácia, ocorreram até manifestações de torcedores do Arsenal pedindo para renovar o seu contrato que se encerrou recentemente depois de exatos 10 anos no clube londrino (isso antes de saberem da última contusão, que pode significar o fim de sua carreira).

Um fato interessante na sua carreira é que, durante os longos tempos em que passou em recuperação, o Pequeno Mozart explorou seu lado roqueiro e investiu seu tempo para tocar guitarra.

Com isso, tornou-se um guitarrista de verdade a ponto de se apresentar junto com uma das principais bandas de punk-rock da República Tcheca: Tri Sestry (2). No YouTube é possível ver algumas das apresentações ao vivo da Tri Sestry com a participação do Pequeno Mozart. Recomendo duas: a Modlitba Pro Partu, na qual o ironicamente o vocalista se apresenta com a camisa do Liverpool, um dos rivais do Arsenal (https://www.youtube.com/watch?v=RFbOVTBcSgU) , e a animada Kovárna, de julho de 2012 (https://www.youtube.com/watch?v=jOTsc3ErexU).

Rosicky tocando com a banda Tri Sestry



Resta saber agora se essa sua mais recente contusão irá fazê-lo encerrar a carreira efetivamente e, nesse caso, se ganharemos mais um ótimo guitarrista. O pequeno Mozart que virou roqueiro. A conferir.

Notas:
(1)      Na Eurocopa de 2004, a Repúplica Tcheca fez excelente campanha ganhando da Alemanha, Holanda, Letônia e goleando a Dinamarca, até perder na semifinal para a zebra Grécia.
(2)      Tri Sestry significa “três irmãs” em tcheco. Curiosamente meu pai, filho de tchecos, tem três irmãs; e eu, assim como ele, também. 

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Rogers e o combate à homofobia no futebol

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Bradley e sua braçadeira de capítão em homenagem às vítimas do massacre na Boate Pulse (


Pela Copa América Centenário, na última quinta-feira (16/6) tivemos o primeiro jogo das quartas-de-final disputado entre os EUA e o Equador, vencido pela equipe anfitriã por 2 x 1. Antes de começar o jogo, o estádio inteiro respeitou um minuto de silencio pelos mortos no massacre ocorrido na boate Pulse, famosa pelo público LGBT, em Orlando (EUA) no último final de semana. Em campo, o meia Michael Bradley, como forma de demonstrar seu apoio à causa, ostentava a braçadeira de capitão com as cores do arco-íris, marco mundial do movimento LGBT.

A repercussão desse massacre homofóbico dentro do ambiente tradicionalmente conservador que é o futebol acaba adquirindo um caráter ainda mais importante. Vale lembrar que o esporte mais popular do planeta é extremamente atrasado em relação ao trato com a diversidade e as provocações entre torcedores no mundo inteiro são exemplares em demonstrar como o ambiente do futebol ainda tem muito a evoluir. No Brasil, só para citar um único exemplo, as torcidas dos principais clubes costumam gritar um uníssono “bicha” quando o goleiro adversário corre para cobrar tiro de meta.

De fato, o futebol costuma refletir a homofobia presente no mundo atual e o maior exemplo disso é a dificuldade que qualquer jogador homossexual tem em assumir sua condição publicamente.

Robbie Rogers, em jogo pela seleção dos EUA

Nesse cenário, torna-se muito importante quando nos deparamos com algum jogador que consiga encarar esse ambiente e efetivamente “sair do armário”. Um dos poucos casos foi do meia estadosunidense Robbie Rogers, com passagens pela seleção dos EUA e que  quando estava jogando no competitivo futebol inglês em 2013, com apenas 25 anos, fez um relato em seu blog pessoal assumido ser homossexual e declarando que estava encerrando a sua carreira prematuramente:
 “Na sociedade atual ser diferente te faz corajoso. Para superar seus medos você precisa der forte e ter fé em seus propósitos', escreveu ele, contando como teve de aprender a conviver com o medo da rejeição: 'Por 25 anos eu tive medo, medo de mostrar quem eu realmente era (...) medo de que as pessoas que eu amo se afastassem de mim se soubessem meu segredo. Medo de que meu segredo atravessasse o caminho dos meus sonhos. O sonho da uma Copa do Mundo, o sonho das Olimpíadas, o sonho de deixar minha família orgulhosa. O que seria da vida sem esses sonhos? Eu poderia viver sem eles?”.

Felizmente, meses depois acabou retornando aos gramados para defender o Los Angeles Galaxy, um dos times mais vitoriosos da MLS (a liga de futebol norte-americano), fato que mereceu uma boa reportagem do Trivela (http://trivela.uol.com.br/mais-uma-grande-vitoria-na-carreira-de-robbie-rogers/)

Desde então, Rogers tem sido um importante porta-voz LGBT no conservador ambiente do futebol, chegando a dizer que caso seja convocado para jogar as próximas Copas do Mundo que serão disputados em países que possuem restrições aos homossexuais, como a Rússia e o Catar, ao invés de boicotar, ele iria aproveitar para escancarar ainda mais essa questão, afirmando que:

"Se eu tivesse que ir para a Rússia ou para o Catar, eu iria sim e seria extremamente “flamboyant” (...) Eu acho que o que aprendi com a minha experiência de sair do armário e estar presente ali no vestiário é que isso é um discurso mais forte do que um boicote ou algo do tipo".

A atitude e luta de Rogers, assim como a solidariedade do capitão dos EUA Bradley na Copa América devem ser enaltecidas, ainda mais em tempos como os atuais, quando temos observado a propagação de discursos homofóbicos e racistas de Bolsonaros da vida. O recente massacre na Boate Pulse ou ainda o assassinato de professores gays no interior da Bahia, cujos corpos foram encontrados carbonizados, são reflexo direto dessa propagação de ódio à diversidade sexual.

Esperamos que algum dia a homofobia seja extirpada não só do careta ambiente do futebol, como de toda sociedade. Mas até lá temos um longo caminho, como a exemplar história de Rodgers demonstra. 

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Irlanda do Norte não é Brasil

Bandeira da torcida da Irlanda do Norte na Eurocopa 2016

Após mais um vexame da seleção brasileira, agora na Copa América, que culminou com a demissão do técnico Dunga, as redes sociais foram povoadas com uma série de piadas e “memes” (confesso que até hoje não entendo muito o conceito disso) sacaneando o escrete canarinho e sua atual decadência.

Uma dessas imagens propagadas mostrava a torcida da Irlanda do Norte na Eurocopa desse ano com uma bandeira semelhante a do Brasil com o escrito “We aren’t Brazil” numa suposta alusão aos 7 x 1, que seria usada no jogo contra a Alemanha, que ainda será realizado. Sinal inequívoco da seleção brasileira ter virado motivo de chacota mundial, de acordo com as piadas que rodaram as redes sociais.

Entretanto, embora haja motivos de sobra para a seleção do Brasil deixar de ser respeitada mundialmente (principalmente se lembrarmos que o atual presidente da CBF não tem viajado para o exterior para evitar ser preso), a história real dessa bandeira da torcida da Irlanda do Norte é um pouco diferente do que pode parecer num primeiro momento.

Trata-se da versão de uma música já conhecida que a torcida norte-irlandesa canta nos estádios há muitos anos em referência à seleção do seu país de 1982, quando surpreendeu na Copa do Mundo e conseguiu classificação para a segunda fase em primeiro lugar em um grupo que tinha a Espanha, a Iugoslávia e Honduras (teve uma vitória histórica contra a anfitriã Espanha com gol de Armstrong: https://www.youtube.com/watch?v=pgmfeuB9Txs ).

A referida canção, que desde então tem sido celebrada pelos norte-irlandeses e pode ser escutada em diversas versão no YouTube, como essa em que aparece a letra (https://www.youtube.com/watch?v=O6ia9drgL7s) refere-se, portanto,ao fato de que a seleção da Irlanda do Norte podia não ser “aquela” seleção dos sonhos do Brasil de 1982, mas dava muito orgulho aos norte-irlandeses. 

Oh my eyes have seen the glory of Espana '82
When little Northern Ireland showed what we could do
Now Lawrie is our leader and we’re coming after you
And that is why we sing
We’re not Brazil
We Northern Ireland
We’re not Brazil
We Northern Ireland (...)


Tal como outras torcidas britânicas, a torcida da Irlanda do Norte gosta muito de entoar cânticos no estádio e essa é mais um bastante representativo, como o vídeo abaixo, de 2006 (ou seja, 8 anos anos dos 7 x 1), pode comprovar: https://www.youtube.com/watch?v=Gy4mK0my04E

Pode-se concluir que, de modo algum, a referência a essa canção refere-se pejorativamente à seleção brasileira como apareceu em algumas redes sociais, mas sim é mais uma grata homenagem do mundo àquela seleção brasileira de 1982.  


Que a seleção brasileira consiga voltar a inspirar outras torcidas, ainda que isso seja muito difícil de imaginar no atual cenário.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Sócrates, Brasileiro de Renome



Nos últimos tempos tem sido cada vez mais comum diferentes torcidas de times como a do Vasco, do Santa Cruz e do Corinthians se manifestarem politicamente nos estádios, se posicionando contra roubo de merenda, monopólio de determinada rede de televisão e, principalmente, contra o golpe.

Assistindo esse momento atual, lembrei-me imediatamente do jogador brasileiro mais politizado que vi jogar: Sócrates, que levava Brasileiro no nome e na alma. Não separo jogador dentro e fora de campo. Me interesso pelo que pensa, o que faz cada craque que vi jogar. E Sócrates, sem dúvida, foi um jogador diferenciado que se destacava não só pelo futebol refinado, que tinha no toque de calcanhar sua marca registrada, mas também pela sua autenticidade, sua postura fora de campo e seu interesse em causas políticas e sociais.

Sócrates chegou no Corinthians no final da década de 1970,  sob a direção do lendário Vicente Matheus. Além do fato de ter feito medicina em Ribeirão Preto enquanto já se destacava no Botafogo da mesma cidade, tendo se sagrado artilheiro do campeonato paulista de 1976,  o “Doutor” (como passou a ser conhecido) tinha outra peculiaridade: seu gosto por música brasileira, passando desde a música caipira de raiz até a MPB.

Como resultado, em 1980 gravou um disco com clássicos do sertanejo de raiz paulista. Com 12 músicas, merece destaque “Luar do Sertão”, (https://www.youtube.com/watch?v=zwqAvhkUtk4), um verdadeiro hino do sertanejo, de autoria de Catulo da Paixão Cearense com João Pernambuco (embora haja uma certa polêmica em torno disso (1).

Coincidentemente, foi após a gravação desse disco que seu viés mais politizado foi se tornando mais conhecido. A partir de 1981, já sob a direção do Waldemar Pires, e com o time enfrentando uma crise que levou-o a disputar a Taça de Prata no campeonato brasileiro de 1982 (2), Sócrates, ao lado de um jovem diretor de futebol e sociólogo Adilson Monteiro Alves,  liderou um movimento dentro do time que acabou conhecido como “Democracia Corinthiana” (nome batizado pelo publicitário  Washington Olivetto). Basicamente esse movimento se consistia no fato de todas as decisões do time passarem a ser decididas pelo voto, que incluía desde os principais jogadores até mesmo o roupeiro ou massagista. Isso tornou-se simbolicamente mais relevante pelo fato de que naquela época o país ainda vivia sob uma ditadura militar.

Após encantar o mundo com a seleção de 1982, Sócrates, juntamente com outros líderes da Democracia Corinthiana como Casagrande e Wladimir, foram assumindo um protagonismo cada vez maior tanto dentro como fora de campo. Nessa época, durante as primeiras eleições diretas para governadores desde o golpe militar, eles chegaram a entrar em campo com a mensagem "Dia 15 Vote" na camisa, algo que gerou repreensão da ditadura na época.

Sócrates com a polêmica camisa conclamando a população a votar.

Outro episódio interessante deles nesse época foi a participação em um show da Rita Lee em São Paulo, retratada no filme Democracia em Preto e Branco, narrado pela própria Rita (3): https://www.youtube.com/watch?v=RX_koIhCYc4. Vale a pena conferir.

Em 1984, Sócrates participou intensamente da campanha pelas Diretas Já, que visava aprovar a emenda constitucional Dante de Oliveira para reestabelecer as eleições diretas para presidente da república. Como naquela época já havia interesse de times do exterior pelo futebol dele, Sócrates chegou a manifestar publicamente em um dos imensos comícios pelas Diretas que se a emenda fosse aprovada, ele não iria embora do país: https://www.youtube.com/watch?v=XvgK587hV3M .

Infelizmente a emenda foi rejeitada, o povo teve que esperar mais tempo para voltar a eleger um presidente, e o Brasil perdeu o futebol do Doutor, que foi exibir seu talento nos gramados italianos, contratado pela Fiorentina.

Antes de ir embora, ainda deixou registrado a sua paixão pelo Corinthians em uma música de sua autoria e gravada em parceria com Simone Guimarães: “Festa Corinthiana”: https://www.youtube.com/watch?v=x68ZbhIMRaE

Quando retornou, depois de “quase” defender a Ponte Preta (chegou a aparecer na Capa da revista Placar com a camisa da macaca), passou pelo Flamengo e pelo Santos antes de se despedir do futebol no Botafogo (SP), clube que o revelou.

Recebeu ainda diversas homenagens, como uma bela canção do santista José Miguel Wisnik, gravada por Ná Ozétti: Sócrates Brasileiro: https://www.youtube.com/watch?v=JBpBlHHUjG4

"Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira
Deu um pique filosófico ao nosso futebol
O sol caiu sobre a grama e se partiu
Em cacos de cristais
As cores vestiram os nomes
E fez-se a luta entre os homens
Até os apitos finais (disseram os deuses imortais) (...)"


Mesmo fora dos gramados, continuou durante muito tempo contribuindo por uma visão crítica e politizada do futebol e da sociedade através de artigos que escrevia para a revista Carta Capital ou ainda em alguns programas esportivos, sempre como crítico da estrutura corrupta existente na CBF e nas federações estaduais de futebol.

Infelizmente, em 2011, com 57 anos, Sócrates acabou falecendo vítima de uma infecção generalizada causada por bactéria, muito provavelmente consequência do consumo prolongado do álcool.

Perdeu o país um dos seus maiores representantes e que hoje, certamente, estaria novamente empenhado na luta pela democracia e contra o golpe que infelizmente querem impor às custas de direitos sociais arduamente conquistados. Dentro e fora de campo, o Brasil sente muita a falta do Sócrates.  

(2): naquela época, os campeonatos estaduais anteriores serviam para definir quais clubes participariam da Taça de Ouro (equivalente à primeira divisão) e da Taça de Prata (equivalente à segunda divisão). Como o Corínthians ficou apenas em oitavo no Campeonato Paulista de 1981, acabou não se classificando direto para a Taça de Ouro. Entretanto, o regulamento previa que quatro times da Taça de Prata subissem durante o campeonato, e o Corinthians, já com influência da Democracia Corinthiana, acabou sendo um desses 4.


(3) quem tiver Netflix, pode conferir o filme “Democracia em Preto e Branco” na íntegra. Ou até mesmo no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=qGwZ7St7v34